– Vós tendes por pai ao diabo! – são palavras de Jesus, no capítulo 8 do Evangelho de João. A visão estreita dos religiosos tradicionais, aliada aos preconceitos que em todos os tempos imperaram na humanidade terrena, fizeram dessa frase de Jesus uma prova da existência do diabo como um ser individual, o eterno rival de Deus, que, na sua visãozinha torta, mais parece um homem mesquinho, vingativo e ciumento. Além disso, por causa dessa frase fora de contexto os judeus foram perseguidos durante séculos. Afinal, se o próprio Jesus está dizendo que eles são filhos do diabo…
Esses são os riscos de uma leitura ao pé da letra, sem estudo, sem contextualização. Este é um dos temas abordados neste vídeo. Outro tema muito importante é a afirmação de Jesus: – Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará! – que verdade é essa?
Este é o 17º vídeo desta série de estudos sobre o Evangelho de João. Uma visão inédita, interpretada diretamente a partir do original grego.
Abaixo você pode ler todo o texto do vídeo.
JOÃO 8:31-59
- Jesus dizia, pois, aos judeus que criam nele: Se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos;
- E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.
Embora o versículo 31 pareça ser a continuação do versículo 30, em que é dito que muitos judeus creram em Jesus, o discurso é independente, trata-se de outra lição.
Jesus estava provavelmente no pátio do templo, pois no versículo 59 é dito que pegaram pedras para atirar em Jesus. Só podia haver pedras no pátio – isso considerando que o templo ainda estava em obras, não estava totalmente pronto.
“(…) Se vós permanecerdes na minha palavra (…)” – o original é “se vós permanecerdes no meu Logos”. Logos, na abertura deste Evangelho, é traduzido como verbo: “No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus e o verbo era Deus”.
Logos também quer dizer “palavra”, “ensino”, “doutrina”. Aqui provavelmente quer dizer doutrina ou ensino – “palavra” é muito vago. “Se permanecerdes verdadeiramente no meu ensino, sereis meus discípulos”.
Mas não podemos esquecer da abertura deste Evangelho. Lá o sentido de Logos é outro, é a manifestação de Deus em nós, é o nosso Cristo interno. Se permanecermos no Logos, sintonizados com o Logos, com o Cristo que habita dentro de nós, seremos verdadeiramente discípulos de Jesus.
Permanecer na palavra, ou no ensino, ou no Logos, é um tema recorrente no Evangelho de João. Trata-se de estar cada vez mais informado (informado no sentido genético do termo) pelas palavras de Jesus, para nos tornarmos semelhantes a Jesus, e, assim, nos tornarmos verdadeiros discípulos do Logos.
“(…) conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” – essa é uma das mais importantes revelações do Evangelho. São três palavras que precisamos compreender: “conhecer”, “verdade” e “libertação”.
Conhecer – “conhecer”, na Bíblia, tem um sentido mais profundo do que o usual. No Gênesis, quando Adão manteve relações sexuais com Eva, é dito que Adão “conheceu” Eva (Gênesis 4:1). “Conhecer”, na Bíblia, pressupõe intimidade, reciprocidade, contato, uma relação pessoal entre aquele que conhece e aquilo que é conhecido.
Verdade – “verdade” é a tradução da palavra grega alétheia (αληθεια). Alétheia é composto pelo prefixo a com o sentido de negação e a palavra léthe, que quer dizer “esquecimento”. Da palavra grega léthe é formada a palavra “letargia (léthe + orgé)”, que é um estado mórbido com a aparência de morte. Então alétheia é o “despertamento”, o desvelamento do que estava esquecido, é despertar da letargia, sair do torpor da letargia, deixar o estado de morte aparente do espírito e despertar para a verdadeira vida.
Libertação – Eleutherosei (ελευθερωσει), indicativo futuro na voz ativa, terceira pessoa do singular do verbo eleutheroó (ελευθεροω), se refere àquele que é livre em oposição àquele que é escravo. Temos que lembrar que no tempo de Jesus a escravidão era uma coisa comum, os escravos eram uma das classes que compunham a sociedade. “Conhecereis a verdade e não serás escravo” – ou seja, enquanto não conhecemos a verdade, somos escravos.
“(…) conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”: “Tereis intimidade com aquilo que foi desvelado e deixarás de ser escravo”. A prática, a aplicação no cotidiano das informações contidas no Evangelho, nos conduz à experiência da alétheia, o desvelamento do ser, a saída do léthe, da letargia espiritual, do esquecimento do ser verdadeiro.
Essa é uma análise mais profunda que leva em conta o significado original das palavras. Mas mesmo numa análise mais superficial encontramos aqui uma lição que deve ser colocada em prática.
Comentamos no capítulo 8 a importância que Jesus dava ao ensino e ao estudo. Jesus não perdia nenhuma oportunidade de ensinar, estava sempre ensinando, aproveitava qualquer oportunidade para ensinar. E no Evangelho de Lucas o primeiro ato da vida pública de Jesus foi ler um livro (Lucas 4:16-17).
Isso é muito significativo. “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Como é que nós conhecemos a verdade? Através do estudo. É claro que precisamos da prática, não há dúvida. Mas não podemos dispensar a leitura. O livro é a condensação do conhecimento especializado acumulado pelo autor. Hoje temos acesso à informação como nunca tivemos na História da humanidade. Não podemos desprezar isso. Quem não gosta de ler deve vencer a preguiça e se esforçar para gostar. Quem não tem tempo, deve deixar de lado algumas das suas ocupações fúteis que o tempo aparece. Quem não tem dinheiro para comprar livros leia pela internet. Quem não tem internet se associe a uma biblioteca pública. Quem não sabe ler aprenda. Quem tem dificuldade de visão procure livros em áudio ou peça para alguém ler. Não tem desculpa.
- Responderam-lhe: Somos descendência de Abraão, e nunca servimos a ninguém; como dizes tu: Sereis livres?
- Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que todo aquele que comete pecado é servo do pecado.
- Ora o servo não fica para sempre em casa; o Filho fica para sempre.
- Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres.
- Bem sei que sois descendência de Abraão; contudo, procurais matar-me, porque a minha palavra não entra em vós.
“(…) Somos descendência de Abraão (…)” – o original é “somos semente de Abraão”. A palavra grega sperma (σπερμα) que dizer “semente”. Abraão é o patriarca dos judeus. A partir de Abraão tiveram origem as três grandes religiões monoteístas: o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo.
“(…) nunca servimos a ninguém (…)” – eles dizem que nunca “serviram como escravos”. Dedouleukamen (δεδουλευκαμεν), indicativo perfeito na voz ativa, primeira pessoa do plural do verbo douleuó (δουλευω) quer dizer exatamente “servir como escravo”. O povo judeu foi escravizado, sim, pelos babilônios. Em sua origem, já havia sido escravizado pelo Egito. Na época em que este Evangelho foi escrito, era dominado pelos romanos em seu próprio território. Mas como os judeus continuavam com as suas leis, com a sua religião, com a sua ligação com o seu deus, eles não se consideravam escravos.
“(…) todo aquele que comete pecado é servo do pecado” – pecado é erro. Quem comete erro é escravo do erro. “Escravo” é mais correto que “servo”. Doulos (δουλος) é “escravo”. Somos escravos dos nossos hábitos. Quem está acostumado a errar há milhares de anos, existência após existência, tornou-se escravo do erro. Mas a mudança de hábitos mentais a partir do conhecimento da verdade nos converte, muda a nossa orientação, voltamos na direção de Deus.
O substantivo grego hamartia (αμαρτια), que é traduzido como “pecado”, se refere originalmente a “errar o alvo”. Erramos o nosso alvo, erramos a direção – em vez de nos dirigirmos para cima, nos dirigimos para baixo. Nos entregarmos ao pecado (ou ao erro) é vivermos no esquecimento do ser, é afastarmo-nos da finalidade para a qual somos creados, é vivermos em um estado de não-verdade, de não-alétheia, de não-vigilância, de não-despertar.
“Ora o servo não fica para sempre em casa; o Filho fica para sempre. Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” – Jesus faz uma comparação usando uma situação bastante comum na época. O escravo, embora pertença à casa, não fica na casa para sempre, pois a casa não é sua. O filho, diferentemente, é o herdeiro da casa, a casa será sua.
Como os judeus falaram em Abraão, dizendo que eram descendência de Abraão, Jesus, ao citar este exemplo, está fazendo uma alusão aos dois filhos de Abraão, Ismael e Isaque. Ismael, filho de escrava (e, portanto, escravo), foi mandado embora junto com sua mãe, Agar (Gênesis 21:10). Isaque permaneceu na casa de Abraão e deu continuidade à aliança com Deus.
O filho fica sempre em casa – o filho é o Cristo, o nosso Cristo interno, que no primeiro capítulo deste Evangelho é chamado de Logos: Em 1:14 está escrito que “o Logos habitou em nós”. O filho é a nossa verdadeira natureza de filhos de Deus, creados à Sua imagem e semelhança, portanto, perfectíveis.
O escravo é a nossa personalidade, o nosso personalismo, o nosso ego. Mas isso é transitório. Vivemos muitas existências, animamos várias personagens em busca de aprendizado e aperfeiçoamento, mas isso tudo é provisório, é passageiro. O que é permanente é a nossa individualidade divina. Quando o filho, o Cristo que habita dentro de nós, nos liberta, nos tornamos livres, deixamos de ser escravos do erro.
Os judeus se achavam livres, mas estavam considerando apenas a sua religiosidade exterior, a sua condição de descendentes de Abraão. Jesus explica que eles não eram espiritualmente livres.
“Bem sei que sois descendência de Abraão; contudo, procurais matar-me (…)” – Jesus era tão descendente de Abraão quanto eles, mas não é da descendência física que Jesus está falando. Eles querem matar Jesus. Abraão foi um exemplo de obediência a Deus, não desejaria matar Jesus. Jesus está apontando para o fato de que eles não agiam como Abraão agiria.
“(…) porque a minha palavra não entra em vós” – o meu Logos não encontra guarida em vós.
- Eu falo do que vi junto de meu Pai, e vós fazeis o que também vistes junto de vosso pai.
- Responderam, e disseram-lhe: Nosso pai é Abraão. Jesus disse-lhes: Se fôsseis filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão.
Há duas palavras no grego que são traduzidas como “filho”: huios (υιος) e teknon (τεκνον). Huios é o descendente. Teknon é mais específico, é a criança dependente, submissa aos pais. Jesus diz que eles não são teknon de Abraão – não agem como verdadeiros filhos, como crianças submissas ao pai.
Jesus conduz a conversa de modo que eles percebam qual a origem das suas atitudes, do seu modo de agir.
- Mas agora procurais matar-me, a mim, homem que vos tem dito a verdade que de Deus tem ouvido; Abraão não fez isto.
- Vós fazeis as obras de vosso pai. Disseram-lhe, pois: Nós não somos nascidos de fornicação; temos um Pai, que é Deus.
“Procurais matar-me a mim, homem” – Jesus se declara homem, um ser humano, como você e eu. Aqui não é ao Cristo que ele está se referindo (pois ninguém pode matar o Cristo), mas ao homem Jesus.
Jesus nega que eles sejam filhos de Abraão. Se fossem filhos de Abraão, agiriam como Abraão. Mas Jesus sustenta que eles agem como o pai deles.
“(…) não somos nascidos de fornicação (…)” – o substantivo grego porneia (πορνεια) é traduzido como “fornicação” ou “prostituição”. Esse substantivo deu origem às palavras “pornô” e “pornografia”. Há quem veja aqui, novamente, uma alusão ao boato de que Jesus não era filho legítimo. Mas não é a isso que eles se referem. A “prostituição” aqui é a idolatria. Dizia-se de quem adorava outros deuses que ele se prostituía aos outros deuses. Eles estão dizendo, então, que não são idólatras. Como Jesus disse que eles não eram filhos de Abraão, defendem-se dizendo que o seu pai é Deus.
- Disse-lhes, pois, Jesus: Se Deus fosse o vosso Pai, certamente me amaríeis, pois que eu saí, e vim de Deus; não vim de mim mesmo, mas ele me enviou.
- Por que não entendeis a minha linguagem? Por não poderdes ouvir a minha palavra.
- Vós tendes por pai ao diabo, e quereis satisfazer os desejos de vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio, e não se firmou na verdade, porque não há verdade nele. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso, e pai da mentira.
O versículo 44 é usado pelos defensores do diabo para provar a sua existência como ser. A palavra “diabo”, conforme já vimos, é formada pelo prefixo dia, que quer dizer “movimento através de”, “afastamento”, mais o verbo balló, que quer dizer “lançar’, “jogar” (daí a origem da palavra “bola”). Diabo, literalmente, quer dizer “lançar separado”. Diabo é “o que separa”, “o que desune”, “o que afasta”, “o opositor”.
Alguns defendem a tese pró-diabo pela presença de pronome ou de artigo antes da palavra diabo, o que personifica esta palavra. Há muitas passagens na Bíblia em que atributos humanos são personificados.
A sabedoria, por exemplo, em Provérbios 9:1:
“A sabedoria edificou a sua casa, lavrou as suas sete colunas” – a sabedoria edificou a sua casa, mas a sabedoria não é um ser.
O mesmo acontece com o pecado, em Romanos 6:23:
“Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna, por Cristo Jesus nosso Senhor” – costuma-se servir a pessoas; será que o pecado é uma pessoa, um ser?
O desejo humano também é personificado como se fosse alguém, como se fosse uma pessoa a nos induzir em tentação.
Jesus diz que o diabo é o pai da mentira. Mentira é o oposto da verdade; é, portanto, todo erro. Pecado é erro. Os pecados, então, seriam culpa do diabo? Mas não é isso que Jesus diz em Marcos 7:21-23:
“Porque do interior do coração dos homens saem os maus pensamentos, os adultérios, as fornicações, os homicídios, os furtos, a avareza, as maldades, o engano, a dissolução, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. Todos estes males procedem de dentro e contaminam o homem” – de onde nascem esses erros ou pecados? Do coração do homem.
Quem nos tenta não é o diabo, um ser chamado diabo, mas é a nossa própria concupiscência, ou seja, os nossos desejos desenfreados, conforme Tiago 1:14:
“Ao contrário, cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz” – o diabo é o nosso próprio coração quando está tomado pelos maus desejos.
O mesmo entendimento vemos em Jeremias 17:9:
“Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e perverso; quem o conhecerá?”
Não tem nada que botar a culpa no diabo. Já está mais do que na hora de assumirmos a responsabilidade pelos nossos próprios atos e pararmos de terceirizar responsabilidades. Isso também vale para os espíritas que botam a culpa de tudo no obsessor. Tudo é culpa do espírito obsessor – o coitado do obsessor muitas vezes é nossa vítima, mas como é difícil assumir os próprios erros, terceirizamos a responsabilidade.
Na parábola do semeador Jesus fala sobre a palavra que é semeada em vários tipos de solo -em vários tipos de “mente” ou “coração”. Vamos ver Marcos 4:15:
“E, os que estão junto do caminho são aqueles em quem a palavra é semeada; mas, tendo-a eles ouvido, vem logo Satanás e tira a palavra que foi semeada nos seus corações” – satanás e diabo são a mesma coisa. A palavra hebraica é “satanás”. Essa palavra às vezes é mantida e às vezes é traduzida para o grego diábolos.
Quem são os filhos do diabo então? São aqueles que obedecem às suas próprias fraquezas, os que não têm domínio sobre os seus corações.
Acreditar em diabo é o mesmo que acreditar em papai Noel: até uma certa idade é válido, pode ajudar no aprendizado simbólico, mas depois de um certo tempo é insustentável. Com o nível de informação que a humanidade tem hoje à sua disposição não há como acreditar no diabo.
Agora há pouco, no versículo 38, Jesus disse:
“Eu falo do que vi junto de meu Pai, e vós fazeis o que também vistes junto de vosso pai” – “vosso pai”: Jesus diz que o pai deles é o diabo e que eles fazem o que viram junto ao diabo. Será possível que eles viram o diabo como um ser em carne e osso?
Por causa dessas interpretações literais, ao pé da letra, houve muita perseguição aos judeus. Pois se levarmos essa declaração ao pé da letra, os judeus são filhos do diabo e viam o diabo -viam e viam bem, pois depois faziam o mesmo que viram o diabo fazer.
“(…) Ele foi homicida desde o princípio (…)” – Jesus diz que o diabo foi “homicida desde o princípio”. Aí eles vêm com a teoria dos anjos caídos. Desde o princípio do quê? O princípio é Deus – só se o diabo estava em Deus…
O primeiro versículo deste Evangelho diz: “No princípio era o verbo e o verbo estava com Deus e o verbo era Deus”. O Verbo ou Logos estava com Deus no princípio. Será que o diabo também estava com Deus no princípio? Dá até pra imaginar um nome de filme: “Um trio da pesada” – com Deus, Jesus e o diabo no cartaz do filme.
Com quem Jesus está falando? Com os judeus. O que era o princípio para os judeus? O Gênesis. O princípio é o Gênesis. Em Gênesis 4:8-9 Caim matou Abel. Um irmão matou o seu irmão. Movido pelo quê? Pela inveja. O que é que diz em Marcos 7:21-22?
“Porque do interior do coração dos homens saem os maus pensamentos, os adultérios, as fornicações, os homicídios, os furtos, a avareza, as maldades, o engano, a dissolução, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura”.
Não vamos botar a culpa no coitado do diabo. Quem matou Abel foi Caim por causa da sua inveja, porque as suas ofertas não foram aceitas por Deus e as ofertas de Abel foram.
Mas Jesus disse que “o diabo é homicida”. Quem vai nos explicar isso é o próprio evangelista João. Depois de escrever este Evangelho, João escreveu a sua primeira epístola, onde ele aproveita para nos explicar esta passagem:
“Porque esta é a mensagem que ouvistes desde o princípio: que nos amemos uns aos outros. Não como Caim, que era do maligno, e matou a seu irmão. E por que causa o matou? Porque as suas obras eram más e as de seu irmão justas. Meus irmãos, não vos maravilheis, se o mundo vos odeia. Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama a seu irmão permanece na morte. Qualquer que odeia a seu irmão é homicida. E vós sabeis que nenhum homicida tem a vida eterna permanecendo nele” (1 João 3:11-15) – homicida, então, não é só quem mata, mas qualquer um que odeia seu irmão.
É isso que Jesus nos ensina em Mateus 5:21-22:
“Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; mas qualquer que matar será réu de juízo. Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do sinédrio; e qualquer que lhe disser: Louco, será réu do fogo do inferno”.
Tem outro detalhe neste versículo da carta de João que nós lemos: “Nenhum homicida tem a vida eterna”. Mas como? Não dizem que o diabo é um anjo caído? E os anjos não são eternos? Como então que o diabo, sendo anjo caído, não tem a vida eterna?
Em Lucas 20:35-36 nós vemos que os anjos não morrem:
“Mas os que forem havidos por dignos de alcançar o mundo vindouro, e a ressurreição dentre os mortos, nem hão de casar, nem ser dados em casamento; Porque já não podem mais morrer; pois são iguais aos anjos, e são filhos de Deus, sendo filhos da ressurreição”.
Essa teoria dos anjos caídos não é defendida nem pelos católicos e protestantes mais esclarecidos. A própria Bíblia de Jerusalém, que é traduzida e comentada por uma comissão composta por católicos e protestantes, reconhece que as passagens dos profetas que serviram de base para essa teoria na verdade se referem a fatos reais, acontecidos na época em que os profetas escreveram.
Anjos são espíritos, e os espíritos não retrogradam. As aquisições morais e intelectuais jamais se perdem. Se fosse possível regredir, retrogradar espiritualmente, estaria perdida a ordem no Universo, as Leis de Deus seriam falíveis, e então Deus não seria Deus.
Vamos voltar ao versículo 44:
“(…) Ele foi homicida desde o princípio, e não se firmou na verdade, porque não há verdade nele (…)” – não há verdade no diabo porque o diabo simboliza a nossa própria oposição às Leis de Deus. Em João 17:17 Jesus pede a Deus a favor dos homens: “Santifica-os na tua verdade, a tua palavra é a verdade”. A palavra de Deus é a verdade – na verdade o Logos de Deus é a verdade. Tudo o que for contrário ao Logos de Deus que habita dentro de nós é diabólico.
Vamos voltar agora aos interlocutores de Jesus. Eles dizem que não são filhos da idolatria, mas não são nem filhos de Abraão nem filhos de Deus: não têm as qualidades esperadas dos filhos de Abraão nem dos filhos de Deus.
Lembramos que a expressão “filho de” é um semitismo – uma expressão idiomática que designa a qualidade da palavra que lhe segue. O filho da sabedoria é o sábio, o filho do pecado é o pecador. As qualidades que eles apresentam são qualidades diabólicas, ou seja, qualidades de oposição às Leis de Deus. Deus nos dá a vida – eles querem a morte, pois desejam matar Jesus.
- Mas, porque vos digo a verdade, não me credes.
Eles não estão em sintonia com a verdade, mas com a mentira, por isso estão dispostos a matar. Não que eles sejam filhos do diabo e por isso pretendem matar Jesus: eles querem matar Jesus, e por isso são considerados filhos do diabo – ou, melhor dizendo, diabólicos, opositores.
A oposição às Leis de Deus é o que nos prende à matéria. Não nos libertamos do ciclo reencarnatório por estarmos viciados, condicionados aos falsos valores da matéria, ao orgulho e ao egoísmo, que valorizam o “ter” em detrimento do “ser”. Quanto mais presos aos valores materiais, às ilusões, desejos e prazeres fugazes da matéria, mais distantes estamos de Deus.
A verdade é Deus, e Deus é eterno. A mentira é a oposição a Deus – que é o apego à matéria, que é instável e transitória. A morte pertence à matéria. A vida na matéria é provisória, mas a vida em Deus – a nossa verdadeira natureza espiritual e divina – é imortal.
- Quem dentre vós me convence de pecado? E se vos digo a verdade, por que não credes?
“Quem dentre vós me convence de pecado? (…)” não é uma boa tradução. A melhor tradução seria: “Quem dentre vós prova algo contra mim acerca de erro?”
- Quem é de Deus escuta as palavras de Deus; por isso vós não as escutais, porque não sois de Deus.
“(…) não sois de Deus” – a preposição “de” (“de” Deus) é a tradução da preposição grega ek. Ek quer dizer “de dentro para fora”, “saído para fora”. Se entendermos essa afirmação de Jesus ao pé da letra, teremos que concluir que os judeus (ou pelos menos esses judeus com quem Jesus conversava) não saíram de Deus, não foram creados por Deus. Se não tivessem sido creados por Deus, haveria outro Creador, um Creador rival de Deus, e então Deus não seria o Absoluto.
Não é isso que Jesus está dizendo. Vimos há pouco que Jesus diz que eles não são filhos de Abraão. Sabemos que os judeus (o próprio Jesus era judeu) são todos descendentes de Abrão – Jesus reconheceu isso.
Jesus faz uma clara distinção entre o homem encarnado e o espírito imortal que anima este homem. Como homens, eles eram descendentes de Abraão e não eram de Deus, pois não manifestavam Deus através de suas existências.
- Responderam, pois, os judeus, e disseram-lhe: Não dizemos nós bem que és samaritano, e que tens demônio?
Acusam Jesus de ser samaritano. Comentamos sobre as diferenças entre judeus e samaritanos no capítulo 4. Os samaritanos eram tão desprezados pelos judeus que ser chamado de samaritano era uma grande ofensa. É muito significativo neste sentido a parábola do bom samaritano, que Jesus nos conta em Lucas 10:33-37.
Também disseram que Jesus tinha demônio. “Demônio” é a tradução da palavra grega daimon, que se refere a “espírito”. Para o historiador Flavio Josefo, que era fariseu e contemporâneo de Jesus, demônio era como eles chamavam os espíritos dos homens perversos. Essa informação de Flavio Josefo deixa claro que naquele tempo já se tinha conhecimento da possibilidade de comunicação e influência mútua entre espíritos encarnados e desencarnados. Acusaram Jesus, então, de estar obsediado, de estar sofrendo assédio de um espírito atrasado.
- Jesus respondeu: Eu não tenho demônio, antes honro a meu Pai, e vós me desonrais.
- Eu não busco a minha glória; há quem a busque, e julgue.
“Eu não busco a minha opinião, há quem busque a sua opinião e a selecione”. Jesus é pura manifestação de Deus, age conforme a Vontade de Deus, não seleciona as partes da Lei de Deus que lhe convém.
- Em verdade, em verdade vos digo que, se alguém guardar a minha palavra, nunca verá a morte.
Não é exatamente a “palavra” que o texto se refere, mas ao “Logos”. “Guardar o Logos” pode ser também traduzido como “vigiar o Logos”. Em 5:24 Jesus diz: “(…) quem ouve a minha palavra, e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, e não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida” – temos que ouvir o Logos, estar receptivos ao Logos; temos que guardar o Logos, vigiá-lo; e, por fim, temos que sintonizar com o Logos, aderir totalmente ao Logos.
Se vigiarmos o nosso Cristo interno, iremos despertando cada vez mais a nossa consciência e superaremos o ciclo reencarnatório – ou, quando reencarnarmos, teremos desenvolvido um grau de consciência que nos permita permanecermos ligados, lúcidos, conscientes de nós mesmos como espíritos imortais, e não só como uma personagem transitória.
Hoje nós morremos cada vez que reencarnamos. Quando nós desencarnamos nós mantemos a mesma personalidade, sabemos quem somos, lembramos do passado. Mas ao reencarnarmos zeramos a memória consciente. Tudo permanece registrado na memória subconsciente, mas nesse nível de consciência do estado de vigília nós temos muito pouco acesso à nossa individualidade imortal. Conforme desenvolvemos o Cristo, a fagulha divina que habita em nós, nossa consciência se expande.
- Disseram-lhe, pois, os judeus: Agora conhecemos que tens demônio. Morreu Abraão e os profetas; e tu dizes: Se alguém guardar a minha palavra, nunca provará a morte.
- És tu maior do que o nosso pai Abraão, que morreu? E também os profetas morreram. Quem te fazes tu ser?
- Jesus respondeu: Se eu me glorifico a mim mesmo, a minha glória não é nada; quem me glorifica é meu Pai, o qual dizeis que é vosso Deus.
Aqui novamente a melhor tradução para a palavra doxa (δoξα) é “opinião”. Jesus pregou a humildade, Jesus lavou os pés dos seus apóstolos para que ficasse registrado que para sermos grandes temos que nos fazer pequenos (João 13:12). Do modo como traduzem parece que Jesus estava ansioso por receber glórias – não é esse o caso.
“Se opino por mim mesmo, a minha opinião não é nada, é o meu pai que opina por mim”. Jesus não fala por si mesmo, fala em nome de Deus. Jesus resume em si mesmo tudo o que de mais elevado havia sido entrevisto pelos profetas do Antigo Testamento. Jesus é a realização das melhores promessas de Deus àquele povo, e eles não reconhecem Deus manifestando-se através de Jesus.
- E vós não o conheceis, mas eu conheço-o. E, se disser que o não conheço, serei mentiroso como vós; mas conheço-o e guardo a sua palavra.
Aqui são duas palavras diferentes traduzidas da mesma forma: “conheceis” e “conheço”. Na verdade, “vós não o conheceis, mas eu o vi”. “Conheceis” é a tradução de ginosko (γινωσκω); “conheço” é a tradução de oida (οιδα). “(…) se disser que o não conheço, serei mentiroso como vós; mas o vi e guardo a sua palavra”.
- Abraão, vosso pai, exultou por ver o meu dia, e viu-o, e alegrou-se.
Jesus está aludindo à alegria de Abraão quando soube que Deus lhe daria um descendente legítimo a partir do qual teria continuidade a sua aliança com Deus (Gênesis 17:17).
- Disseram-lhe, pois, os judeus: Ainda não tens cinqüenta anos, e viste Abraão?
- Disse-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que antes que Abraão existisse, eu sou.
Jesus reafirma aqui o que já havia sido dito por João Batista (João 1:15). Jesus é um espírito mais velho que eles. Mesmo que eles tenham nascido antes de Jesus, o espírito que animou Jesus é incalculavelmente anterior a eles.
Há outro sentido aqui: a tradução correta é “antes que Abraão fosse gerado Eu sou”. Abraão foi gerado, teve início – o Cristo manifestado em Jesus não teve início. O Cristo ou Logos é a manifestação de Deus no mundo sensível, e Deus não teve início.
- Então pegaram em pedras para lhe atirarem; mas Jesus ocultou-se, e saiu do templo, passando pelo meio deles, e assim se retirou.
Jesus representa o Cristo. O Cristo é Deus em nós. Quando o homem age contrariamente às Leis de Deus, quando o homem se revolta contra as Leis divinas, o Cristo sai do templo, sai do nosso corpo físico, afasta-se de nós. Somos templos de Deus, o Logos construiu tabernáculo em nós, mas compete a nós sintonizarmos com ele ou não.
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