O Espiritismo está baseado na Bíblia? Os espíritas seguem a Bíblia?
Algumas pessoas de outras religiões, religiões que se baseiam na Bíblia, acusam os espíritas de usar só aquilo que lhes convém na Bíblia. Um exemplo é a reencarnação. Eles dizem que os espíritas pegam partes isoladas da Bíblia para defender a reencarnação e que ignoram as passagens bíblicas que contrariam a reencarnação.
Não é verdade – o que ocorre é um grande mal-entendido.
Esse artigo se destina às pessoas de boa vontade que estejam abertas a pensamentos diferentes dos seus. Eu aprendi e aprendo muito com católicos e protestantes – e tenho certeza de que eles podem aprender alguma coisa comigo.
Houve um período, em meados do século XIX, em que estranhos fenômenos começaram a acontecer, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Hoje, ainda, nós vemos, ocasionalmente, na televisão, reportagens sobre casos de polstergeist, como ocorreu num município aqui do RS, em 2014. Pedras caíam sobre o telhado, pedras caíam dentro da casa, sem quebrar o telhado, objetos se moviam sem que ninguém encostasse neles.
Os fênomenos que ocorreram no século XIX eram mais específicos, e aconteciam principalmente nos salões da alta sociedade.
No século XIX Paris era o centro do mundo. Era Paris que ditava a moda para o mundo. Os jogos de salão, as músicas, os saraus, tudo se iniciava em Paris e se espalhava pelo mundo. E uma moda que durou alguns anos foi o que ficou conhecido como as “mesas girantes” ou “mesas falantes”. Várias pessoas sentavam em torno de uma mesa, encostavam as palmas das mãos sobre o tampo da mesa, e ela se movia, se elevava, às vezes ia de encontro à parede.
Algumas pessoas tiveram a ideia de fazer perguntas à mesa. E a mesa batia um dos pés, uma ou duas vezes, como se estivesse respondendo às perguntas dos circunstantes com um sim ou um não.
Os cientistas da Academia Francesa de Ciências tentaram explicar, mas não aparecia nenhuma teoria satisfatória. Na época estava em voga, causando muita polêmica entre os cientistas, o magnetismo animal ou mesmerismo, que tem esse nome por causa de Mesmer, o organizador da doutrina do magnetismo.
Em 1854 o professor Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais tarde chamado Allan Kardec, toma contato pela primeira vez com o fenômeno das mesas girantes. Percebe que havia uma causa inteligente controlando o processo e descobre, primeiro através de perguntas simples, respondidas por meio de um ou dois toques, correspondendo a sim ou não, e depois por meio de um número determinado de pancadas para cada letra do alfabeto, que essa causa inteligente que controlava o processo nada mais era que o espírito de alguém que já havia morrido.
Pouco depois ele percebe que podia se servir de médiuns. As comunicações que deram origem à primeira edição de O Livro dos Espíritos aconteceram através de três médiuns adolescentes.
O Espiritismo, como vemos, surge como uma ciência de observação. Inúmeros cientistas, muitos mesmo, se debruçaram sobre os fenômenos. Muitos deles concluíram que os fenômenos não eram causados por espíritos, e muitos deles concluíram que sim, os fenômenos eram causados por espíritos. Dos dois lados há homens sérios e comprometidos com a verdade.
Muitas dezenas de livros foram escritos na segunda metade do século XIX tratando do tema. Há livros inteiros de cientistas explicando a causa dos fenômenos e livros inteiros refutando as teses de outros cientistas e lançando as suas próprias conclusões.
Eu vou citar rapidamente algumas das teorias da época acerca da mediunidade:
- Mistificação: tudo é mentira, tudo são truques de pessoas habilidosas;
- Ilusão: Nada do que acontece é real: tanto os supostos médiuns quanto as pessoas que assistem os fenômenos são vítimas de alucinação, de sugestão;
- É o demônio: Essa é a teoria padrão da Igreja Católica. Mesmo que a comunicação diga só coisas boas, é o demônio;
- Os cascões astrais: Os teósofos, em sua maioria, acreditavam que o espírito não poderia se comunicar após a morte do corpo físico, mas permanecia por algum tempo um cascão astral, como se fosse um registro temporário da consciência;
- Loucura: médium é tudo louco;
- Força psíquica: mais ou menos o que os parapsicólogos pensam hoje; haveria pessoas com uma força especial que provocaria os fenômenos;
- Personalismo: essa teoria diz que o sensitivo tem o poder de reproduzir o nome e o caráter de outras pessoas.
A teoria mais bem embasada é a teoria espírita. É evidente que houve muitas fraudes e que há fraudes todos os dias, em todos os setores da atividade humana. Mas isso não afasta a veracidade da teoria espírita.
Teve andamento, então, principalmente através de Allan Kardec, o diálogo com os espíritos. Neste diálogo chega-se a algumas conclusões básicas:
- Existe Deus – a ideia de Deus era fortemente criticada pelos cientistas do século XIX;
- Existem espíritos, e os espíritos são preexistentes, ou seja, eles já existiam antes de encarnar – e continuam existindo depois da morte do corpo físico;
- Existe reencarnação – e o próprio Allan Kardec relutou muito em aceitar essa ideia;
- Existe a possibilidade de comunicação entre os espíritos encarnados e os espíritos desencarnados, ou seja, entre “vivos” e “mortos”.
A partir desses pontos básicos surgem novos questionamentos: Qual seria a utilidade de uma comunicação de um espírito?
– Uma das utilidades é mostrar ao homem a continuidade da vida e a colheita daquilo que plantamos, ou seja, a Lei de causa e efeito – quem teve uma vida digna, quem fez mais o bem do que o mal, é relativamente feliz depois do desencarne; quem teve uma vida indigna, quem fez mais mal do que bem, sente-se infeliz depois do desencarne.
Resumindo: somos os construtores do nosso destino. Não existe acaso; Deus não escolhe pessoas para serem ricas ou pobres, doentes ou sãos, inteligentes ou débeis mentais. Nós somos o resultado de nós mesmos.
Essas conclusões aos poucos vão formando um contexto filosófico. Percebe-se, de todas essas informações passadas pelos espíritos, que temos que ser bons. Surge então a questão 625 de O Livro dos Espíritos:
– Qual o tipo mais perfeito que Deus ofereceu ao homem para lhe servir de guia e de modelo?
E a resposta:
– Vede Jesus.
A partir dessa resposta o Espiritismo, como filosofia de vida, está irremediavelmente ligado a Jesus. Pois, se sabemos que temos que ser bons, que temos que adotar uma linha de pensamento e conduta, e se temos um modelo e guia para isso, temos que conhecer o máximo possível esse modelo e guia.
É obrigação do espírita, então, conhecer Jesus. Os Evangelhos, que são os livros que nos apresentam os ensinamentos de Jesus, estão inseridos na Bíblia. Por isso o espírita se utiliza da Bíblia: por causa de Jesus.
Para compreender o ensino de Jesus é preciso conhecer o contexto histórico-cultural em que esse ensinamento está inserido. Isso nos leva ao estudo da Bíblia como um todo.
Eu compreendo perfeitamente que aqueles religiosos que têm a Bíblia como a única fonte da verdade sintam-se desconfortáveis, até ofendidos por verem pessoas interpretando o seu livro sagrado de maneira tão diferente. Compreendo. Mas, se esse é o seu caso, eu devo dizer que isso é um problema seu com as suas próprias crenças: Se você está seguro das suas crenças não há nada a temer.
Se você tem alguma dúvida a respeito das suas crenças, então você tem que se permitir estudar, analisar outros pontos de vista. Como disse o apóstolo Paulo, “analisai tudo, retende o que é bom”.
Como nós vemos, o Espiritismo não é baseado na Bíblia. A origem do Espiritismo não tem nada a ver com a Bíblia. Acontece que nós vivemos no mundo ocidental. A cultura do mundo ocidental é a cultura judaico-cristã. Mesmo um ateu filho de pais ateus, que nunca teve contato com a Bíblia nem com religião nenhuma está inserido, está mergulhado na cultura judaico-cristã. O modo de pensar da nossa sociedade ocidental é judaico-cristão.
Nada mais natural, então, do que estudar as origens das crenças e do modo de pensar do homem ocidental através da Bíblia. Aliás, no tempo de Allan Kardec o ocidente ainda era dominado culturalmente e politicamente pela Igreja Católica. Aqui no Brasil o catolicismo ainda era a religião oficial do Império.
O Espiritismo não se apropria da Bíblia, aliás, o Espiritismo não precisa da Bíblia. Particularmente, eu estudo a Bíblia porque gosto; eu considero a Bíblia como uma grande fonte de sabedoria – mas não como livro sagrado.
– Mas quanto à acusação de que os espíritas selecionam as partes da Bíblia que lhes convém?
Ora, mas isso é uma coisa evidente! Aliás, todos fazem isso! Quem prega a salvação pela fé ignora as passagens que falam da salvação pela graça; quem prega a salvação pela graça ignora as passagens que falam da salvação pela fé. Quem cita o mandamento “não matarás” ignora que o deus do Antigo Testamento mandava matar velhos, mulheres e crianças sem piedade.
Falando por mim, não em nome da Doutrina: quando eu cito o Evangelho eu estou me baseando em Jesus; meu modelo e guia é Jesus. Quando eu cito o Antigo Testamento eu estou me apoiando no contexto histórico-cultural da Bíblia. Qual é o livro que nós conhecemos que trata de assuntos espirituais desde a Antiguidade? É a Bíblia!
Existe outro motivo que me leva a tratar de temas bíblicos: muitas pessoas, nesse exato momento, estão descontentes com as suas crenças. Elas percebem que a sua religião não as preenche, não tira as suas dúvidas, não explica satisfatoriamente determinados fatos, e procuram conhecer outros pontos de vista.
Sei de muitas pessoas que se tornaram espíritas através do meu trabalho. Isso não é muito importante, porque ser espírita não é importante. Mas sei de pessoas que estavam completamente desiludidas com a sua religião, ou pessoas que não acreditavam em Deus e que mudaram o seu posicionamento a partir do meu trabalho.
Isso é muito gratificante. Vai chegar o dia em que nós não precisaremos de tantas crenças. Mas, enquanto precisarmos de crenças para seguir um caminho reto, que seja então um conjunto de crenças sólido, coeso, e, principalmente, racional.