“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus”.
Este é o primeiro de uma série de vídeos em que estudaremos o Evangelho de João. Os Evangelhos são mananciais inesgotáveis de sabedoria divina. Se olharmos por trás das letras mortas, encontraremos importantes simbolismos que nos oferecem a chave para muitas das nossas maiores dúvidas filosófico-existenciais.
Este estudo é elaborado a partir da análise de mais de 10 traduções do Evangelho de João para o português, de comentários de especialistas, além da análise minuciosa dos textos gregos, idioma em que foram escritos os Evangelhos. Em muitos casos, oferecemos traduções que nos parecem mais adequadas ao nosso grau de entendimento atual.
Neste 1º vídeo, estudamos João 1:1-5. Como cristão e espírita, minha visão sobre este Evangelho, embora possa não ser do seu agrado, certamente é inovadora.
Abaixo você pode ler todo o texto do vídeo.
JOÃO 1:1-5
- No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
- Ele estava no princípio com Deus.
- Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez.
- Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.
- E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam.
Nestes versículos que se concentra a maior polêmica do Novo Testamento. Baseada nestes versículos, a maior parte dos cristãos sustenta, há séculos, a divindade de Jesus. Ao longo deste estudo chamaremos a atenção para as muitas passagens em que Jesus deixa claro que ele não é Deus.
Os biblistas que consultamos, além das próprias bíblias de estudo, são unânimes em afirmar que este prólogo do Evangelho de João era um hino já conhecido na época em que este Evangelho foi escrito. João o inseriu como abertura para o seu Evangelho.
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” – esse primeiro versículo é suficiente, para milhões e milhões de cristãos, para provar que Jesus é Deus, que o próprio Deus Creador do Universo infinito encarnou entre os habitantes de um minúsculo grão de poeira chamado planeta Terra.
Grandes pensadores, como Masaharu Taniguchi, fundador da Seicho-no-ie, e Carlos Torres Pastorino, que tem uma obra monumental, defendem que o Verbo é Deus Pai, pois verbo é ação.
Verbo é ação, e o pai se caracteriza pela ação, pois é o pai quem crea. O pai é a atividade, o filho é a passividade – o filho sofre a ação de ser creado.
O argumento é válido, mas ele não leva em consideração que a palavra portuguesa verbo é apenas a tradução da palavra grega logos. O Evangelho foi escrito em grego. O grego era o idioma oficial das cerimônias religiosas até o surgimento da Vulgata, a tradução da Bíblia para o latim feita por São Jerônimo.
No grego a palavra que é traduzida como verbo é logos. E logos tem um sentido muito mais abrangente do que verbo.
Não podemos esquecer que João escreveu o seu Evangelho em Éfeso, a mesma cidade em que surgiu a primeira teoria do logos, com Heráclito de Éfeso, 500 anos A.C.
Heráclito é o autor da famosa ideia que diz que um homem não pode parar no mesmo rio duas vezes, pois a água está sempre se movendo, então o rio já não será mais o mesmo, e o próprio homem também está constantemente mudando e já não será o mesmo homem.
Mas, para Heráclito, existe um princípio eterno de ordem no Universo, um princípio que mantém as coisas ordenadamente, e este princípio é o logos, que neste sentido pode ser traduzido como “a razão do universo”.
O estoicismo grego, mais tarde, sustenta que o logos é a razão suprema do mundo, a razão que rege o Universo e que, ao mesmo tempo, está presente na razão humana. Para os estoicos, nada é mais divino do que o logos. Logos, para eles, significa razão.
O mundo é regido pela razão, o mundo desenvolveu-se pela razão, o mundo é mantido, o mundo é o que é graças à ação do princípio razoável. O homem não é potencialmente nobre e humano a não ser pela razão. O dever do homem é seguir a reta razão, ou seja, seguir o logos. É aí que o homem encontrará a felicidade.
O logos estoico tem grande influência sobre o Cristianismo, pois seguir a reta razão será considerado como obediência ao logos, obediência a Deus. Afastar-se da razão é o que nós conhecemos como pecado. Afastar-se da razão é a doença, a loucura, é “perder a razão”.
O platonismo nos séculos I e II antes de Cristo concebia Deus como absolutamente transcendente, e que mantinha ligação com o mundo sensível, o mundo como nós o conhecemos, através do logos, que já seria, então, quase um intermediário entre Deus e o homem.
Filo de Alexandria, que era um judeu radicado no mundo grego, havia desenvolvido uma concepção do logos que em muitos pontos se parece com o logos apresentado por João. Filo faz um esforço para integrar o pensamento judaico e o pensamento grego. Para Filo, Deus é como Ele é retratado pelos gregos: absolutamente transcendente, sem relação direta com o mundo sensível. E o princípio de mediação entre Deus e a matéria é o logos.
Para Filo, o logos é o arquétipo das ideias, é o mundo inteligível, o modelo do mundo sensível. Para ele o logos não é nem creado nem increado. Assim como Deus, que é transcendente e imanente, o logos também se distingue radicalmente do mundo e ao mesmo tempo age no mundo. O logos se mantém entre o Creador e a creatura, o logos é o intercessor do mortal e é o embaixador do soberano junto do subordinado.
No Antigo Testamento também há, algumas vezes, menções a uma palavra de Deus, o davar Javé, que não é uma palavra personificada, mas que é uma espécie de agente de Deus. Logos em hebraico seria traduzido como davar, que quer dizer inteligência, palavra, verbo. O conceito moderno mais próximo de davar seria o de informação. Para que uma coisa exista, esta coisa precisa ser informada – informada no sentido genético do termo; sem essa informação nada subsiste, nada toma forma.
Não podemos, então, de modo algum, considerar o conceito de logos como se fosse uma exclusividade do Evangelho de João. O conceito já era exaustivamente conhecido e discutido.
Também não podemos trabalhar sobre a palavra verbo com a concepção que esta palavra normalmente nos oferece. O termo original é logos, não verbo.
O argumento de que o verbo é Deus Pai, porque o verbo é ação e o Pai é ação não leva em consideração que, antes do verbo, também há o substantivo e o adjetivo. Deus é substantivo, e seus atributos são o adjetivo.
Para o Espiritismo, Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas.
A substância de Deus é a inteligência. O substantivo de Deus é Inteligência. A Inteligência é a causa primária da realização, e a realização se dá em três níveis: pensamento, palavra e ação.
Jesus diz que “Deus é espírito” (João 4:24). Deus é espírito. Apenas isso. O que caracteriza o espírito é a faculdade de pensar. O pensamento é a inteligência manifestada. A inteligência se manifesta através do pensamento.
Se a Inteligência é o substantivo de Deus, o Pensamento é o adjetivo de Deus, é o atributo de Deus resumido por Jesus na frase “Deus é espírito”.
Deus é a inteligência suprema. A inteligência se manifesta através do pensamento. O pensamento se organiza através da palavra. A manifestação da inteligência é o pensamento. A palavra é a exteriorização do pensamento.
João, na sua primeira epístola, diz que “Deus é amor” (1 João 4:8); e que “Deus é luz” (1 João 1:5). Amor e luz são a mesma coisa. A palavra de Deus, ou o Verbo de Deus é luz e amor que se exteriorizam do pensamento de Deus.
O pensamento se organiza através da palavra. O verbo estava com Deus: A Palavra estava no Pensamento.
O homem é imagem e semelhança de Deus: A palavra é imagem e semelhança do pensamento.
Deus se manifesta no mundo sensível através do logos, que é o princípio ordenador. Temos, então, substantivo, adjetivo e verbo.
O substantivo é a substância de Deus: Inteligência suprema, causa primária de todas as coisas.
O adjetivo são os atributos de Deus resumidos por Jesus em: “Deus é espírito”.
O verbo é a ação de Deus. “Deus é amor”; “Deus é luz”.
Amor e luz se manifestam no mundo através do logos, do Cristo que habita em cada um de nós, da fagulha de luz de Deus que temos em nosso íntimo.
Deus, o princípio de todas as coisas, é Inteligência. A inteligência se realiza em pensamento, palavra e ação.
O Pensamento é o Pai; a Palavra é o logos, o verbo, o filho; e a Ação é o espírito, o princípio espiritual agindo sobre o princípio material.
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” – no “princípio” era o verbo. “Princípio” é a tradução do substantivo grego arché (αρχη). Arché é a geração primária, o surgimento de todas as coisas.
O grego, assim como o inglês, não faz distinção entre “ser” e “estar”. Nós traduzimos como no princípio “era” o verbo, mas podemos traduzir também como no princípio “estava” o verbo, ou “o verbo estava no princípio”.
A primeira pergunta de O Livro dos Espíritos é: – Que é Deus? – e a resposta é: – inteligência suprema, causa primária de todas as coisas (ou causa primeira de todas as coisas), ou seja, o “princípio”.
O princípio é Deus, e o logos estava no princípio: O logos estava em Deus – o logos está em Deus, pois nós estamos em Deus e Deus está em nós.
No princípio era o verbo “e o verbo estava com Deus” – o logos estava com Deus.
A preposição “com” – “com” Deus – é a tradução da preposição grega pros. Pros indica um movimento, uma orientação: “estar voltado para”: O logos está orientado para Deus.
O simbolismo do pecado original é justamente a perda dessa orientação do logos que está dentro de nós em direção ao seu fim, em direção a Deus.
A palavra Deus vem do termo latino Dies que quer dizer “o Dia”. Deus é a luz. Em grego essa palavra também tem este sentido de “ver com clareza” – a palavra “teoria” deriva de theos – Deus – e quer dizer “contemplação”, “olhar para algo”.
Estarmos voltados para Deus, então, é estarmos a caminho para a transparência do olhar e da luz. A luz que vemos é uma com a luz que nos faz ver. Nós vemos a luz. Mas nós só vemos a luz graças à luz.
O logos está voltado para Deus: O ser e a inteligência que estão em nós têm uma orientação, estão em movimento, estão em andamento para a luz plena. Deus é luz, nós somos luz.
No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, “e o verbo era Deus”.
No texto grego não há artigo antes de Deus. Como não existe artigo indefinido no grego, quando não há artigo é possível compreender-se, na tradução para o português, como se ali houvesse um artigo indefinido.
Pode-se traduzir, então, que o logos era Deus ou que o logos era “um” deus. Não que exista mais de um deus. Mas como uma referência ao Deus imanente, à partícula de Deus que existe dentro de cada um de nós. Jesus, neste sentido, é Deus. Não o Deus absoluto, Creador do Universo. O infinito não pode tornar-se finito num homem. Mas Jesus é um Deus, é uma das manifestações possíveis de Deus, Jesus desenvolveu plenamente o seu Cristo interno, o seu logos divino, a sua partícula de Deus. Jesus tornou-se “um” com Deus, pois desenvolveu-se espiritualmente a ponto de ser plena manifestação de Deus.
Conforme o que já expusemos até agora, podemos traduzir assim:
O Logos estava no princípio e o Logos estava direcionado para Deus. O Logos também era Deus.
Temos aqui a causa primária de todas as coisas e os três níveis de realização: Pensamento, Palavra e Ação.
O Logos estava no Princípio. O Princípio é Deus, Inteligência Suprema, causa primária de todas as coisas.
O Logos, normalmente traduzido como Verbo ou Palavra, é o Cristo, o Cristo cósmico que está em todas as coisas, é a manifestação de Deus, o Filho de Deus perfeitamente personificado na pessoa de Jesus.
O Logos estava direcionado para Deus – Deus, aqui, é o Pai a que se refere Jesus. É o Deus Creador que se manifesta através do Logos.
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus” – o Logos estava contido no princípio. De logos deriva a palavra “lógica”, que se refere a raciocínio, ideia, palavra.
Logos é a ordem em oposição ao Caos. A Teogonia de Hesíodo diz que no princípio era o Caos. O logos é o princípio ordenador direcionado a Deus, sem o qual seria o caos.
“Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez” – tudo foi gerado pela Palavra, que é a manifestação, a exteriorização do Pensamento. Toda a creação é amor e luz exteriorizada de Deus. O Pensamento de Deus ordenou-se através do princípio organizador que é o Logos.
“Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens” – a vida estava contida na palavra. A vida é a faísca, a fagulha, a partícula de luz da Inteligência Suprema nas individualidades.
Aliás, a vida está presente em todos os seres. Quando falamos em “seres” estamos falando de um verbo, do verbo “ser”. Todos os outros verbos estão contidos no verbo ser. No grego, “ser” e “estar” são o mesmo verbo.
Os verbos andar, trabalhar, comer, por exemplo, querem dizer “estar andando”, “estar trabalhando”, “estar comendo” – o verbo ser sempre está presente. O ser presume a vida, e todos os seres que têm vida são casas de Deus, são templos de Deus.
“E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam” – a luz, em si mesma, é invisível. É na matéria que a luz se torna um fenômeno, é na matéria que a luz se torna perceptível. As trevas não a apreendem, não obtém controle sobre ela, não a compreendem.
Na verdade nós não vemos a luz. A luz é invisível. Nós só percebemos a luz através das coisas que ela nos deixa perceber. E nada atinge a luz. Não importa quais sejam as nossas impurezas, nossa luz não é manchada por nenhuma impureza.
Deus é luz e Deus é amor, então Deus nunca deixa de nos amar – pois a luz nunca deixa de brilhar.
“(…) a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam” – a palavra grega traduzida como “compreenderam” é katélaben (κατελαβεν) – indicativo aoristo, na voz ativa, terceira pessoa do singular do verbo katalambanó (καταλαμβανω), que seria melhor traduzido como “apreender”, “obter controle”.
Podemos aceitar a tradução “compreender” no sentido literal da palavra, que é de “apreender conjuntamente”, “apanhar algo em conjunto”.
Compreender é isso: Não se compreende uma coisa do nada, mas sempre em companhia de alguma coisa – um livro, uma lição, um acontecimento.
Então as trevas não conseguiram apreender a luz, não conseguiram obter controle sobre a luz, não compreenderam o fenômeno da luz – a ignorância não apreende o conhecimento, o ódio não compreende o amor.
Preste atenção ao tempo dos verbos:
E a luz “resplandece” nas trevas – resplandece, no presente – e as trevas não a “compreenderam” – compreenderam, no passado.
A luz resplandece – no presente – porque a luz resplandece sempre, está sempre brilhando, nunca deixa de brilhar.
As trevas não a compreenderam – no passado – ainda, mas haverão de compreender um dia, pois este é o destino de todos nós. As trevas deixarão de ser trevas
Nós temos o Logos ou Cristo dentro de nós. Temos uma fagulha da luz de Deus dentro de nós. Compete a cada um de nós desenvolvermos essa luz, mas para isso é preciso nos conscientizarmos de nossa natureza divina.
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