A passagem que narra o episódio da mulher adúltera é uma das mais famosas dos Evangelhos. A frase de Jesus dita à mulher adúltera é muito repetida: “Vá e não peques mais”. No entanto, esta passagem não faz parte do texto original do Evangelho de João, onde ela é tradicionalmente encontrada.
Este é o tema deste vídeo, o 15º desta série de estudos sobre o Evangelho de João. Minha visão é predominantemente espírita, mas esta série de estudos transcende quaisquer sectarismos.
Abaixo você pode ler todo o texto do vídeo.
JOÃO 8:1-11
Este capítulo começa com o episódio da mulher adúltera. Esta passagem não está presente nos melhores e mais antigos manuscritos. Há um consenso entre os especialistas de que ele não pertence ao texto original de João. Alguns manuscritos trazem esta passagem depois de Lucas 21:38. E, se analisarmos o seu estilo, ele tem tudo a ver com o Evangelho de Lucas.
De todas as tentativas de explicar o porquê desta passagem não constar em manuscritos importantes, a explicação mais convincente é a de Santo Agostinho. Agostinho atribui a sua ausência ao ciúme dos maridos. Se analisarmos o papel subalterno da mulher naquele tempo, não resta dúvida de que os homens da época não seriam capazes de admitir uma lição de Jesus que podia dar a impressão de favorecer ou, pelo menos, desculpar o adultério.
Das grandes religiões da Antiguidade (mesmo considerando que Jesus não fundou nenhuma religião) Jesus foi o único a tratar a mulher como igual.
Além do ciúme dos maridos, é preciso considerar que o adultério, na Bíblia, simboliza a idolatria. A união do povo de Israel com Deus era vista como um casamento, e a traição do povo (a adoração de outros deuses por parte do povo) era tida como adultério para com Deus.
Nos primórdios do Cristianismo a atitude de perdão de Jesus para com a mulher adúltera poderia ser vista como uma condescendência para com as pessoas que adotassem outras crenças, outros modos de pensar, outras visões sobre o Cristianismo – visões diferentes daquela que se tornou a vencedora, e que deu origem à Igreja Católica Apostólica Romana.
- Jesus, porém, foi para o Monte das Oliveiras.
- E pela manhã cedo tornou para o templo, e todo o povo vinha ter com ele, e, assentando-se, os ensinava.
Estes dois versículos são a continuidade natural do capítulo 7. Depois deles deveria vir o versículo 12, em que Jesus nos dá uma lição em forma de discurso, exatamente como acontecia no capítulo 7: “Falou-lhes, pois, Jesus outra vez, dizendo: Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida”.
- E os escribas e fariseus trouxeram-lhe uma mulher apanhada em adultério;
- E, pondo-a no meio, disseram-lhe: Mestre, esta mulher foi apanhada, no próprio ato, adulterando.
- E na lei nos mandou Moisés que as tais sejam apedrejadas. Tu, pois, que dizes?
- Isto diziam eles, tentando-o, para que tivessem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia com o dedo na terra.
- E, como insistissem, perguntando-lhe, endireitou-se, e disse-lhes: Aquele que de entre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela.
- E, tornando a inclinar-se, escrevia na terra.
- Quando ouviram isto, redargüidos da consciência, saíram um a um, a começar pelos mais velhos até aos últimos; ficou só Jesus e a mulher que estava no meio.
- E, endireitando-se Jesus, e não vendo ninguém mais do que a mulher, disse-lhe: Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou?
- E ela disse: Ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: Nem eu também te condeno; vai-te, e não peques mais.
Podemos notar que esta é a única vez em que se fala “os escribas e fariseus” neste Evangelho – quem se expressa assim com frequência é Lucas.
Outro detalhe é que Jesus escreve na terra – alguns manuscritos dizem “no chão”, mas escrever com o dedo no chão deve ser na terra. Se Jesus estivesse no templo, é difícil imaginar que ele pudesse escrever na terra – só se o chão estivesse muito empoeirado. Talvez eles estivessem no pátio do templo, que ainda não estava totalmente concluído.
A mesma dificuldade nós encontramos em relação às pedras. Só poderia haver pedras – talvez – no pátio, já que possivelmente eles estivessem em obras. Mas é quase certo que esse acontecimento tenha se passado noutro local, ao ar livre, e não no templo.
Mesmo considerando isso, é dito que Jesus ensinava. Jesus ensinava sempre, não perdia oportunidade de ensinar. No Evangelho de Lucas o primeiro ato narrado da vida pública de Jesus foi ler um livro (Lucas 4:16-17).
Isso é muito significativo. Ler e ensinar, ou seja, aprender e ensinar. Todos nós temos o dever de movimentar o conhecimento. O conhecimento nos aproxima de Deus, porque nos aproxima da verdade. Conhecimento estagnado é conhecimento inútil. Temos que aprender com vontade de ensinar e ensinar com vontade de aprender.
Disseram a Jesus que a “(…) mulher foi apanhada, no próprio ato, adulterando” – a palavra grega que traduzem como “no próprio ato” é epautophóró (επαυτοφωρω). Phor quer dizer “ladrão”. Literalmente eles disseram que ela foi apanhada no ato de furto, pois a mulher era considerada propriedade do marido. O adultério era o furto de uma propriedade – mas a culpada era sempre a mulher.
Embora a lei existisse para punir os dois, na prática a lei existia para defender os interesses dos homens.
No tempo de Jesus os judeus não podiam condenar ninguém à morte. O Sinédrio não tinha essa prerrogativa, foi por isso que levaram Jesus a Pilatos – eles queriam matar Jesus, já tinham condenado Jesus, mas precisavam do aval do procurador romano.
“(…) na lei nos mandou Moisés que as tais sejam apedrejadas. Tu, pois, que dizes?” – essa situação é típica no Evangelho de Lucas. Fazem uma pergunta embaraçosa a Jesus na tentativa de comprometê-lo com uma das partes. Se ele a condenasse estaria sendo contraditório, já que pregava o perdão; se ele a perdoasse, estaria se opondo abertamente à lei e seria visto quase como um pervertido pelos homens da época.
Jesus não respondeu à pergunta deles. Em vez de responder, se abaixou e começou a escrever na terra com o dedo.
Há muitas especulações sobre o que Jesus escreveu. Provavelmente nunca saberemos. Essa é a única vez em que é relatado que Jesus escreveu. E escreveu na terra, ou, se considerarmos que ele estava numa parte interna do templo, talvez tenha escrito no pó.
Os dez Mandamentos, que são as leis que Deus teria dado através de Moisés, foram escritos em pedra, as chamadas tábuas da lei. Jesus escreve na terra. Talvez um minuto depois alguém tenha passado por ali e tenha apagado o que Jesus escreveu.
Jesus não nos deixou leis escritas na pedra. Não precisamos de tábuas da lei, pois as Leis de Deus estão escritas em nossa consciência, como nos diz a questão 621 de O Livro dos Espíritos.
A atitude de Jesus desarma os acusadores da mulher. Provavelmente esperavam uma reação imediata, e já tinham seus argumentos na ponta da língua. A calma e o silêncio imposto por Jesus vai favorecer a reflexão quando ele der a sua resposta.
Vemos que Jesus não aceita o papel de Juiz. Em Lucas ele diz isso abertamente quando um homem pede a ele que interfira na repartição de uma herança (Lucas 12:14).
Cada um deve tomar suas próprias decisões. Não podemos depender da opinião dos outros, não podemos nos escorar na opinião dos outros como se fossem muletas, não podemos nos tornar dependentes de conselhos, seja de espíritos encarnados ou desencarnados, não podemos depender de líderes religiosos.
Nossas decisões competem exclusivamente a nós mesmos. Envolver o próximo numa decisão que compete só a nós mesmos é uma tentativa, mesmo que inconsciente, de repartir a responsabilidade – ou o que muitos chamam de karma. Karma quer dizer “ação”. Toda ação gera uma reação. Nossas decisões irão gerar resultados, e não podemos envolver terceiros nesses resultados.
“(…) como insistissem, perguntando-lhe, endireitou-se, e disse-lhes: Aquele que de entre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela” – “Atire a primeira pedra quem não tiver pecado”. As Leis de Deus estão gravadas em nossa consciência. Analisando as suas consciências, aqueles homens não conseguiram olhar para fora sem olhar para dentro de si mesmos.
Como disse Jesus em outra ocasião:
“Ou como podes dizer a teu irmão: Irmão, deixa-me tirar o argueiro que está no teu olho, não atentando tu mesmo na trave que está no teu olho? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então verás bem para tirar o argueiro que está no olho de teu irmão” . (Lucas 6:42)
Jesus deixou um ensino que aborda diretamente o adultério:
“Ouvistes que foi dito aos antigos: Não cometerás adultério. Eu, porém, vos digo, que qualquer que atentar numa mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela”. (Mateus 5:27-28)
Muitos não cometem erros por falta de oportunidade ou por falta de coragem, mas isso não quer dizer que não vivam intimamente com erro. Em relação ao adultério, especificamente, muitos não traem por falta de oportunidade ou por falta de coragem, mas alimentam seus desejos imaginando situações, fantasiando aventuras sexuais com outras pessoas – ou concentram seus desejos em pornografia.
Além disso tudo, Jesus nos disse:
“Não julgueis para que não sejais julgados” (Mateus 7:1) – com o mesmo rigor com que julgamos o nosso próximo a nossa consciência julga a nós mesmos.
“E, endireitando-se Jesus, e não vendo ninguém mais do que a mulher, disse-lhe: Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou? E ela disse: Ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: Nem eu também te condeno; vai-te, e não peques mais” – é interessante notar que não é mencionado o perdão por parte de Jesus.
O verbo “perdoar” é a tradução do verbo grego aphiemi (αφιημι). Perdoar é “deixar ir”, “deixar para trás”, “libertar”. Essa libertação é uma decorrência natural do aprendizado. Quando o espírito aprende uma lição definitivamente, ele liberta-se dos erros relacionados àquela lição. Isso não interfere na Lei de causa e efeito – o que plantamos temos que colher, sempre.
Mas essa colheita será mais suave, porque estamos fortalecidos pelo aprendizado. E as possíveis dificuldades que venhamos a colher como resultado de nossos erros passados, dependendo do nosso grau de conscientização serão vistas como novas oportunidades de aprendizado.
“(…) vai-te, e não peques mais” – a tradução literal seria: “Vá! Desde agora não mais erres”. “Pecado” quer dizer “erro”, só isso. Sempre é tempo de recomeçar. Por mais erros que tenhamos cometido, sempre é tempo de parar de errar e reescrever um novo roteiro.
Simbolicamente, a mulher adúltera representa todo espírito, como qualquer um de nós, em algum ponto da nossa jornada evolutiva. Todos nós sabemos que há pessoas capazes de cometer crimes bárbaros, ou de simplesmente só pensarem em si mesmos, em suas próprias vantagens, sem nunca experimentarem remorso ou arrependimento.
Mas há um momento em que a consciência começa a despertar – e até que esse despertamento seja capaz de produzir uma transformação nas atitudes, por algum tempo o despertamento parcial da consciência vai apenas gerar sentimento de culpa. O espírito está viciado em antigos erros e já sabe que não deve cometê-los. Sente-se permanentemente acusado, perseguido.
A situação muda radicalmente quando o espírito encontra o seu Cristo interno. O encontro com o Cristo, com a partícula de Deus que habita dentro de cada um de nós, nos dá a certeza de que é possível recomeçar – deixar o nosso passado de erros para trás, livrarmo-nos do sentimento de culpa, dos nossos acusadores internos. Começar uma nova etapa em nossa jornada evolutiva. Com o Cristo.
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