Existe um espiritismo kardecista? Sim e não; depende do ponto de vista. Até hoje, sempre que eu vi um espírita respondendo a essa questão ele alega que “espiritismo é uma palavra criada por Allan Kardec”. Acho que até eu mesmo já disse isso alguma vez. Só que não.
Na verdade, Allan Kardec não criou a palavra “espiritismo”. Ela foi registrada em pelo menos três livros anteriores ao O Livro dos Espíritos, de onde geralmente concluímos que ela é criação de Kardec. Kardec utilizou-se de uma palavra nova, mas não foi o criador dessa palavra.
Isso tem alguma importância?
Importância legítima, nenhuma. Mas é bom sabermos que o espiritismo não é exclusividade dos espíritas. Há muitos autores espíritas que fazem questão de afirmar que Espiritismo e Umbanda são coisas diferentes. E de fato são. Mas as diferenças não são assim tão grandes como esses confrades talvez gostariam.
Muitos irmãos umbandistas se consideram espíritas e consideram a Umbanda como sendo Espiritismo. Podemos discutir questões doutrinárias com eles, argumentando uma série de diferenças. Mas a verdade é que eles têm todo o direito de se considerarem espíritas, até porque a Umbanda nasceu dentro de um centro espírita. A Umbanda não é religião africana, como muitos pensam. É religião genuinamente brasileira.
Algumas vezes recomendo que a pessoa procure um centro espírita. Digo, então, que ela procure um centro espírita “kardecista”. E já aconteceu de algum irmãozinho purista mais afoito vir me corrigir.
Ora, o que quero fazer, quando indico à pessoa que procure um centro espírita kardecista, é justamente evitar confusão com centro de Umbanda, ou de Candomblé, ou de Batuque – como é chamada a religião de nação africana aqui no Sul.
Nós podemos ter esse entendimento de que Espiritismo é uma coisa e Umbanda é outra, mas o público em geral não tem. Para eles, tudo é espiritismo. Ou então, para diferenciar, dizem “espiritismo de mesa” e “espiritismo de terreiro”. Ou, ainda, “espiritismo mesa branca”.
Na Umbanda também tem esse problema. Confundem a Umbanda com o Candomblé, com a Quimbanda, com o Batuque. Então eles se referem à Umbanda como “Umbanda linha branca”.
Os evangélicos também passam por algo semelhante. O termo “evangélico” ou “igreja evangélica” engloba conceitos bem diferentes. Um luterano talvez não goste de ser comparado a um neo-pentecostal, mas ambos são chamados de “evangélicos”. Só quem não passa por esse problema é a igreja católica, por ser muito mais tradicional e estática.
Mas eu não vejo problema nenhum em falar de um “espiritismo kardecista” ou simplesmente “kardecismo”. Alegam que a Doutrina não é obra de Allan Kardec, que é obra dos espíritos
Pode ser, mas coletada, selecionada, averiguada e editada por Allan Kardec. Se fosse outro o codificador do Espiritismo, a Doutrina seria outra. Defender que Kardec foi um simples “codificador” (seja lá o que isso queira dizer) é desconhecer os bastidores de sua obra.
Só como exemplo: se compararmos a 1º edição de O Livro dos Espíritos, de 1857, e a 2º edição, de 1860, que é a que conhecemos, veremos sensíveis diferenças em algumas respostas. As respostas mudaram de acordo com o paradigma da ciência – em 1859 foi lançado A Origem das Espécies, de Charles Darwim, e Allan Kardec fez uns ajustes no O Livro dos Espíritos para não destoar da evolução da ciência.
Percebe-se, também, que Allan Kardec, editou algumas respostas dos espíritos. Claro que ele fez isso mantendo o ensino dos espíritos, mas este ensino sempre passou pelo seu entendimento. O Espiritismo tem, inegavelmente, o seu caráter kardecista.
Neste sentido, então, é válido falarmos em kardecismo. Mas o Espiritismo não pode se resumir, de modo algum, às obras de Kardec. Não havia condições na época para que compreendêssemos coisas que somos capazes de compreender hoje. O Espiritismo não é estático, não é um conjunto de ensinamentos pronto e acabado.
Cada um deve buscar dentro do amplo leque do Espiritismo aquela vertente com que se sinta mais à vontade. Temos que considerar que ser espírita requer estudo permanente – e o estudo deve ser algo prazeroso. Não podemos nos prender a determinados autores só porque eles estão na moda ou porque são muito bem conceituados no movimento espírita.
Não somos iguais, nossa capacidade de entendimento é variável. Particularmente, depois de Allan Kardec indico sempre André Luiz. As obras de André Luiz são um desenvolvimento natural e necessário do Espiritismo de Kardec.
Mas há outros excelentes autores, uns mais conceituados, outros menos. Existe algum preconceito em relação a determinados autores. O ideal é verificarmos por nós mesmos, mas para isso é preciso segurança doutrinária – por isso Allan Kardec é indispensável. Quem não passa por Kardec corre o risco de aceitar fantasias como se fossem verdades, ou, por outro lado, deixar de estudar pontos de vista interessantes dentro do Espiritismo só porque alguns líderes acham que suas obras não prestam.
Não me ofendo de ser chamado de kardecista. Não me considero seguidor de Kardec – sou seguidor de Jesus. Mas a Doutrina é, sim, kardecista. Alguns irmãos gostariam que a Doutrina tivesse sido dada pelos espíritos, pronta, inteira, acabada. Acho que isso tem muito a ver com a fragilidade de crença – atribuir toda a Doutrina aos espíritos parece mais seguro, mais “divino”.
Mas isso é ignorar o trabalho constante de Allan Kardec desde que começou a estudar os fenômenos chamados espíritas. Seu trabalho na Revista Espírita demonstra bem como ele lidava com as ideias, como ele selecionava o que passava pelo crivo da razão e rejeitava o que lhe parecia incompleto ou falso.
Não estou tirando do Espiritismo o seu caráter de revelação. Nem estou negando a atuação dos espíritos, comandados pelo Espírito de Verdade. Mas o trabalho no plano material conta, infalivelmente, com a participação necessária dos homens encarnados. Não é o fato de estar desencarnado que torna alguém especial. Allan Kardec tinha condições de formular uma Doutrina a partir dos ensinamentos dos espíritos. Foi o que fez.