Devemos ajudar quem não quer ser ajudado? Até que ponto devemos respeitar o livre-arbítrio do próximo? Há um ponto a partir do qual devemos agir mesmo contra a vontade do espírito, encarnado ou desencarnado, para o seu bem? Pensei em inserir meia dúzia de posicionamentos de autores consagrados sobre o tema, mas não quero interferir na sua análise.
A vida em sociedade requer mecanismos que regulem as ações que possam interferir na vida do próximo. Por isso há leis que proíbem inúmeras práticas criminosas. Se um criminoso pratica um crime ele deve sofrer a pena, que pode ser a prisão. O juiz e o policial não respeitam o livre-arbítrio do criminoso, pois devem cumprir o que determina a lei. Isso é aceito por todos. Nunca vi um espírita se opor à prisão de um malfeitor. No entanto, ao tratarmos de malfeitores desencarnados, a coisa muda de figura. É muito comum, nos centros espíritas, se referirem a espíritos endurecidos no mal como “irmãozinhos sem luz”. Não estou criticando quem faz isso, de modo algum. Apenas não compreendo, até hoje, por que tamanha diferença de tratamento entre encarnados e desencarnados. Muitos espíritas pedem leis duras para determinados crimes, não se sensibilizam com a situação caótica dos presídios, alegando que “nada é por acaso”, “a semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória”. Mas quando se trata de obsessores renitentes e perversos, são “irmãozinhos sem luz”.
Repito que isso não é uma crítica. Apenas quero salientar que, em alguns casos, o livre-arbítrio não é levado em consideração para o bem da sociedade: prende-se o bandido. Noutros casos, o respeito ao livre-arbítrio é levado às últimas consequências, pois o obsessor é respeitado em suas razões e tratado em igualdade de condições em relação ao obsediado. Claro que a sistemática é diferente. Seria absurdo querer doutrinar um criminoso em vez de prendê-lo; e prender o espírito obsessor não é a solução para uma obsessão.
Recentemente o Instituto Royal foi invadido por ativistas que libertaram cães que eram utilizados em testes de medicamentos. No Facebook, vi manifestações favoráveis e outras nem tanto. Algumas manifestações traziam fotos de crianças ou velhos – parece que não eram atuais – alegando que as ações dos ativistas deviam ser dirigidas às crianças e aos velhos em situações críticas. Acho que uma coisa não exclui a outra. Mas quero chamar a atenção para o fato de que os animais não têm livre-arbítrio, não decidem por si mesmos, não perguntaram a eles se queriam ser utilizados para experimentos e não perguntaram a eles se queriam ser soltos.
E quanto aos doentes mentais? Seu livre-arbítrio deve ser respeitado? E os viciados em álcool e drogas? Eles respondem por si mesmos?
As grandes cidades do país têm sido surpreendidas com cada vez mais moradores de rua. No centro de Porto Alegre, onde moro, se tropeça neles nas calçadas, nas praças, em toda parte. É um fenômeno relativamente recente. Havia casos isolados, hoje faz parte da paisagem. Não há como não notar que esse fenômeno se deve, em parte, à reforma psiquiátrica, que fechou mais de 80 mil leitos psiquiátricos no país. A lei 10.216/2001 prevê, entre outras coisas, que a internação compulsória deve ser determinada pelo juiz.
Muitos desses que andam pelas ruas estariam, noutros tempos, apartados da sociedade. Eles não surgiram do nada. Eles sempre existiram, mas estavam escondidos. A sociedade os escondia para preservar a paisagem. Sabemos que a maioria dos antigos internados em manicômios não tinham necessidade de internação. Eram os naturalmente excluídos pelas diferenças: filhos difíceis, homossexuais, alcoólatras, drogados, brigões, desafetos de pessoas influentes e sem escrúpulos. E os obsediados. Muitos deles, como ainda hoje, traziam como principal problema a obsessão.
A obsessão é reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) na Classificação Internacional de Doenças, a CID 10, item F. 44.3, estados de transe e possessão, com a seguinte observação: “Transtornos caracterizados por uma perda transitória da consciência de sua própria identidade, associada a uma conservação perfeita da consciência do meio ambiente. Devem aqui ser incluídos somente os estados de transe involuntários e não desejados, excluídos aqueles de situações admitidas no contexto cultural ou religioso do sujeito.” Grande parte dos casos de transtornos mentais são causados pela obsessão, e como tais deveriam ser tratados.
Mediunidade e transtornos mentais
No manicômio de Barbacena, em Minas Gerais, mais de 60 mil pessoas morreram, muitos deles devido ao tratamento com choques elétricos. Convido você a assistir a este documentário feito em 1979. Tem pouco mais de 20 minutos.
O fato é que hoje muitos dos moradores de rua são portadores de transtornos mentais. O que é certo: respeitar o seu livre-arbítrio e deixá-los nas ruas, que é onde querem ficar, ou forçá-los a uma internação visando tratamento adequado? Uma pessoa com transtornos mentais responde por si mesma? Ela pode decidir se quer ficar na rua ou se quer ser tratada? E quanto aos viciados? Alguém viciado em álcool ou drogas tem condições de decidir o que fazer?
Não sou conhecedor do tema. O meu amigo Ricardo de Lima, do blog Kardeciano.blogspot.com.br, que eu recomendo, trabalha diretamente com essas pessoas. Apenas fico em dúvida e chamo a sua atenção para a questão do livre-arbítrio. Assim como há a diferença de tratamento em relação a encarnados e a desencarnados, há muitas opiniões divididas sobre os resultados da reforma psiquiátrica por conta desses fatores: Eles podem ou não podem decidir por si mesmos? Repetindo a primeira pergunta deste artigo: Devemos ajudar quem não quer ser ajudado?